Quer ler este texto em PDF?

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

ROMANCE TERESINENSE

Artur Passos acentuou que Abdias Neves foi um escritor do seu meio, sensível, perceptivo e capaz de registrar, com acuidade, os eventos maiores e melhores da sociedade que o cercava. UM MANICACA fixa, portanto, numa análise inicial, fisionomia do teresinense dos últimos tempos do século XIX - uma sociedade de pequena classe média, quase proletarizada, vivendo num meio desconfortável, com luz de candeeiro, água conduzida sobre lombo de jumentos, cidade suja, sem trabalho, em que se salientavam inúmeros preconceitos. O livro é, assim, um documento da época, com as respectivas mentalidades, da forma que se pode resumir:

1) religiosidade excessiva do povo.

2) a intriga como meio de destruir caracteres e de sobrevivência própria.

3) o sexo como tabu.

4) a vitória política pela importância familiar.

5) jornalismo de descomposturas.

6) pavor ao contágio da tuberculose.

7) ausência de atividades agrícolas.

8) população masculina dedicada ao comércio e as letras.

9) emigração para o Amazonas, atraídos os homens pela riqueza dos seringais.

10) bacharelismo como posição.

11) culto das festas populares.

12) diversões contínuas das serenatas e dos bailes comemorativos de aniversários.

13) cartas anônimas como meio de denunciar más ações alheias.

14) maledicência generalizada.

15) repúdio ao meretrício, ao adultério, ao amancebamento.

Miloca, frustrada, Júlia, esfomeada de sexo, o hipócrita João Sousa, a beata Eufrasiana, o preconceitual Antônio Machado, o manicaca tísico Antônio de Araújo, a mística Candoca, o cínico Luís Borges, o bem falante namorador Ernesto, a feia e introspectiva Mundoca e o irreverente Dr. Praxedes - eis o mundo das personagens de Abdias Neves em UM MANICACA, gente que representava o próprio meio acanhado em que vivia. Diz-se em literatura que quem nasceu personagem sobreviverá. Morrerão os escritores. Sobreviverá o tipo que tenha carne e alma, como dizia Eça de Queirós. Das personagens de Abdias só ele mesmo - o Dr. Praxedes - sobreviverá porque tem autenticidade. Viu-se a si mesmo através dos homens e das mulheres que quis criar. Em Machado de Assis, as personagens mais notáveis são os olhos de Capitu, os braços de Severina, o constrangimento de muitos, as anotações psicológicas. A maior personagem de Machado de Assis é ele mesmo, como disse um critico paulista. Assim, em UM MANICACA, a maior personagem é Abdias Neves, que não criou propriamente personagens em profundidade, registrou defeitos de gente defeituosa. Abdias Neves foi apenas figurista para que pudesse fazer ironia a custa dos homens. Não criou personagens. Retratou-se no livro.


A. Tito Filho, 21/10/1989, Jornal O Dia

SÃO PEDRO

As coletividades cristãs homenageiam, como dia santificado, os santos Pedro e Paulo, mártires da fé, ambos mortos num 29 de junho do primeiro século, ao tempo das inúmeras perseguições aos que acreditavam na mensagem de Cristo.

Pedro foi crucificado de cabeça para baixo; a Paulo concederam a decapitação.

A data, embora relembre o sacrifício cruel dos dois, tem merecido, através dos tempos, e tradicionalmente, manifestações festivas da alma popular, que dedica aos notáveis apóstolos veneração especial, mormente ao discípulo dileto do Enviado, o guardião da chave dos céus, o chaveiro vigilante da porta única de entrada na morada de Deus, o primeiro papa, fundador da Igreja - aquele Simão da Galiléia, de profissão pescador nos mares da paisagem natal, que, chamado pelo Mestre, o seguiu, na qualidade de companheiro de jornadas, para Dele ouvir:

- És Pedro (em grego, rocha), e sobre esta rocha construirei a minha igreja.

Padroeiro dos pescadores, humilde, Pedro participa do espírito das gentes com as virtudes da simplicidade e da boa-fé e espontânea credulidade, visíveis nas narrativas do Novo Testamento.

Crêem nele os modestos, os pobres, os desapercebidos de bens materiais, os desassistidos de luxo e de grandeza, os que vivem na fé retemperadora das forças, fonte de esperanças; suplicam-lhe graças os que almejam a tranqüilidade espiritual; dedicam-lhe estima e apreço os poetas - os que sonham com a paz do coração, como Catulo, que lhe dirigiu estes versos:

Indispus-me, senhor, com Santo Antônio,
E até com São João, que era meu guia,
Porque eu sendo pedrista, a toda prova,
Só festejava o vosso santo dia!

Viúva, a mãe do célebre porteiro celestial vivia de terra em terra, desassossegada, desvalida - e disto deriva a crença de que a viuvez encontra proteção no chefe dos apóstolos - e as que perderam o marido lhe pedem graças e atenções, para salvá-las da solidão e do abandono e das necessidades e - por que não? - dos preconceitos, pois a filosofia popular já assentou que marido numa casa, se para nada servir, tem ao menos serventia do ronco - demonstração da existência de homem sob o teto.


A. Tito Filho, 24/06/1989, Jornal O Dia

UMA FESTA TRADICIONAL

São João foi áspero pregador, degolado na Palestina aí por volta do ano 31 de nossa era. De noite, comemora-se o São João com farta alimentação, dança, bebidas, adivinhações para casamento e morte, e acendem-se fogueiras, e soltam-se balões, e tocam-se fogos de artifícios, bombas, traques, e dançam-se quadrilhas. Festa tradicional na Europa, notadamente em Portugal, e no Brasil, aonde chegou trazida pelo descobridor lusitano.

Conta a tradição que o santo ilustre adormece durante o dia, no seu aniversário natalício. E à noite, ao enxergar o clarão do fogaréu aceso para homenageá-lo, desde dos céus e acompanha a oblação popular.

Já na Europa, em tempos recuados, se acendiam nos lugares altos e nas planícies grandes fogueiras, em redor das quais se dançava com as alegrias do anúncio de colheitas abundantes. O fogo era o símbolo da afugentação da fome e da miséria. No Brasil, houve o entendimento de que serviam as fogueiras para que se aquecessem os friorentos, no mês de são João, mas pesquisas folclóricas demonstraram que os camponeses iam e vinham por cimea do braseiro infernal com o sentimento da purificação da alma.

Interessantes as manifestações folclóricas. Elas voam, são peculiares a todas as comunidades. Lendas da Ásia, estórias do mundo inteiro estão vivas no espírito dos sertanejos nordestinos. Caracterizam-se pela universalidade as petas dos caçadores, as facécias de mentirosos vulgares, a gratidão dos bichos, os contos de lobos e de onças e de fantasmas. A brincadeira do dedo-mindinho vigora na Bretanha rica de depoimentos desse eu espiritual das gentes, de força intensa, extraordinária, contagiante, a ponto de se estabelecer que aqui e ali o folclore tem variantes, para que, ao cabo de contas, seja um só.


A. Tito Filho, 17/07/1989, Jornal O Dia

LEGENDAS E TÍTULOS

Os jornais que circulam de manhã são feitos de noite e o trabalho avança até a madrugada. Natural que se verifiquem cochilos, pois o cansaço alcança os que operam nas máquinas, na diagramação e na revisão, provocando-se de vez em quando troca de títulos e de legendas nas fotografias. Também se alteram nomes nos artigos e nas reportagens. Faz poucos dias nesta coluna escrevi PRÉSTITOS CARNAVALESCOS e saiu PRESTÍGIOS.

Num domingo recente, famoso colunista social de Teresina noticiou o aniversário da idosa matrona e da elegante e bonita Alcília Afonso. Trocaram-se as legendas. No retrato de Alcília saiu o nome da matrona aos seus setenta anos, e no retrato da matrona imprimiu-se o nome de Alcília.

Estava-se em 1942. Getúlio Vargas governava o país com mão de ferro. havia criado o Departamento de Imprensa e Propaganda, conhecido pela sigla de DIP, encarregado de fiscalizar a imprensa e fazê-la arrolhada, debaixo de severíssima censura. Os jornais e revistas que se desviassem das normas ditatoriais, poderiam sofrer punições insolentes, que iam da suspensão de atividades à intervenção e ao fechamento. O grande "O Estado de São Paulo" passou a circular sob exclusiva orientação do governo, afastando-se os proprietários e os diretores das funções respectivas. Só em 1945, com a queda de Getúlio, o órgão voltou à situação anterior de liberdade.

Na época, o "Correio da Manhã", fundado pelo combativo Edmundo Bittencourt, circulava no Rio de Janeiro, fiscalizado pelos censores. Nele trabalhavam conhecidos adversários da ditadura, sem que pudessem manifestar as suas idéias. No auge do regime de força getulista, o jornal publicou duas notícias uma sobre uma exposição de porcos de raça, outra sobre a atuação de Osvaldo Aranha, um dos mais fiéis servidores ditatoriais, no Ministério das Relações Exteriores. As duas notas de reportagem estampavam fotografias ilustrativas: debaixo do Ministro saiu O PORCO PREMIADO. Debaixo do suíno - O MINISTRO ARANHA. Quase se fechava o jornal.

Dia 14, nesta coluna, publicaram-se dois artigos um meu e um do professor Cunha e Silva. Mas se trocaram os títulos. O meu era ENTIDADES CULTURAIS, o de Cunha - PROTESTOS VÃOS. Cochilos.


A. Tito Filho, 16/04/1989, Jornal O Dia

terça-feira, 30 de agosto de 2011

AINDA VESTIBULAR

A mania nacional tem sido reformar o ensino. Cada ministro, uma reforma. Sem recuar muito no tempo, na década de 30 o brasileiro tinha um ginásio de cinco anos. Terminado este, submetia-se a exames para as faculdades, caso quisesse. O ministro Francisco Campos bolou uma reforma, séria, de que abaixo se tratará.

Estando ministro, Gustavo Capanema implantou nova reforma: quatro anos de ginásio, três anos de cientifico ou clássico. Concluídos, o jovem buscava, se lhe apetecesse, os exames de ingresso nas escolas superiores. A reforma Capanema, ela mesma, teve acréscimo e supressão de disciplinas. Nela meteu-se o espanhol, dela tirou-se o espanhol. Depois, chegaria a vez a abolir o francês. Introduziram-se organização social e política do Brasil e educação moral e cívica. E assim por diante, até que a estudantada desembocou na reforma Jarbas Passarinho, com a ensinança do primeiro e do segundo grau, ora em vigor. Ensino profissionalizante mas ninguém vai nessa profissionalização, porque todos querem o anel de doutor, mesmo sem mercado de trabalho.

A melhor reforma do país, foi de fato, a do ministro Francisco Campos. Cinco anos de ginásio, para a base humanística. Em seguida, o futuro profissional definia-se por um dos três ramos de preparatórios: o pré-jurídico, o pré-médico ou pré-técnico.

O pré-jurídico, por exemplo, era constituído de disciplinas necessárias ao bacharel em direito: estudavam-se biologia, sociologia, economia política, higiene, história da filosofia, literatura, latim - e assim o estudante ingressava na faculdade com excelente soma de conhecimentos. Antes do ingresso, havia o vestibular, não o vestibular de testezinhos, mas o de provas escritas em que realmente se podia mostrar competência.

Nos tempos de hoje se diz que a guerra do vestibular parece mais terrível do que a guerra entre árabes e judeus, pois esta é uma guerra de violentos choques e a do vestibular se torna guerra psicológica, donde os vencidos promanam frustrados, como se estivessem marginalizados do processo social brasileiro.


A. Tito Filho, 15/07/1989, Jornal O Dia

ANTIGAMENTE

Teresina foi a primeira cidade do Brasil construída em traçado geométrico, no chão da mata derrubada. As casas de moradia tinham a parede da rua rente com as calçadas. Havia um corredor central, ladeando-o salas e alcovas, a sala de refeição no meio, com peitoris para o saguão, e o célebre puxado de quartos, despensa, cozinha e banheiro. Esta estrutura ainda existe em muitas residências. Depois se construíram palacetes.

Teresina não nasceu espontaneamente, mas de modo artificial, prevendo-se praças e ruas. fizeram-se as edificações mais necessárias, mercado, cemitério, hospital, cadeia. Surgiu o jornal. Criaram-se clubes. Animada a vida teatral. Festivos carnavais. Fundaram-se clubes recreativos. Apareceram os primeiros cafés e restaurantes. Jogo de bilhar, passeio de cavalo. O costume das serenatas. Os festejos religiosos.

Ainda no alvorecer do século XX e nas proximidades de 50 anos, Teresina não tinha serviço d'água encanada nem luz elétrica: comuns os CARGUEIROS d'água que abasteciam as residências, montados no jumento bisonho, estrepando na cangalha gigante. Deliciosos tempos de Teresina doutra. O astro era o acendedor de lampiões - candeeiros no alto dos postes, queimando querosene. Ao lado do desconforto, da poeira, das raras medidas de higiene, da tuberculose e da sífilis, do casebre de palha, a maledicência generalizada na roda de calçada e nos serenos de bailes.

Nos primeiros anos do século, a água encanada. No Governo Miguel Rosa, luz elétrica. Sociedades literárias animavam a cidade. Chegou a era do cinema - o mudo, depois o musicado, finalmente o falado. O jardim, o jardim da Praça Rio Branco, de doce lirismo, rapazes rodando num sentido e garotas noutro para o namoro paroquiano mais gostoso, o namoro dos olhos. Chegaria a vez da Praça Pedro II, do mesmo jeito - olhos dele grudados nos dela.

Correram mais de 50 anos. Teresina crescia mas permaneciam os costumes provincianos. O bom gelado de pega-pinto, o sorvete de gelo rapado, os tipos populares, os freges de panelada, a cidade pacata, dorminhoca às 21 horas, familiarmente. Boa bolinação nos cinemas, em que as normalistas gostosas namoravam apimentadas. E os cabarés da Raimundinha Leite, de Gerusa, da Rosa do Banco, repletos de borboletas fornidas e nos quais se ombreavam desembargadores, estudantes e vaqueiros.

Crime só de longe em longe por motivos passionais as mais das vezes. Raros assassinatos bárbaros. Contam-se, assim, de memória, as mortes do motorista Gregório, do Lucrécio Avelino e do motorista trucidado por Catanã.


A. Tito Filho, 15/08/1989, Jornal O Dia

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

MACAQUICE

Desperdício, roubalheira, esperteza das mordomias, corrupção, doença, fome, miséria, o quadro nacional de malefícios espanta e desespera. Mas vigora também, por parte, a feia e desalentadora macaqueação ou rigorosa imitação da criatividade alheia. Os velhos programas de rádio, nas décadas de trinta e quarenta, tempos áureos de cantores populares verdadeiros, eram imitados dos Estados Unidos, sobretudo, bem assim quase todo o processo televisivo. Sílvio Santos, nas suas apresentações dominicais, corrobora a minha assertiva. A TV norte-americana criou os ensinamentos de práticas rurais e fez do telejornalismo uma das grandes conquistas da comunicação rápida. Nos Estados Unidos surgiram os ricos processos de representantes para auditórios, com os famosos júris de pessoas ilustres, introduzidos entre nós pelo notável J. Silvestre e seguidos por Flávio Cavalcanti, criador também dos NOSSOS COMERCIAIS POR FAVOR, copiados depois generalizadamente. A série de O CÉU É O LIMITE viria ainda dos Estados Unidos.

A TV dos Estados constitui cópia das TVs do Rio e são Paulo. Reproduz-se o que elas enviam como fornecedores. Enlata-se a cultura regional brasileira. Nega-se aos brasileiros a paisagem das unidades federadas. Recusam-se-lhe os cenários sociais das áreas da diversificada geografia humana nacional. Crime ou irresponsabilidade? Aos Estados cabem alguns momentos de jornalismo noticioso e de perguntas e respostas. Tudo copiado das fontes do Rio e são Paulo. Triste, macaqueação perfeita. Terminadas as notícias, os locutores retiram o microfone da lapela, colocam-no em determinado lugar da mesa, um conversa com o outro, riem ambos, risinho sem graça, e rezam o boa-noite, como na invenção do Cid Moreira. A TV Globo começou, a Bandeirantes imitou, outras copiam, e o resto do Brasil, sem idéias novas, copiou. Agora todo noticioso tem um comentarista, que ministra a aula de sabedoria política.

Perdeu-se neste país a originalidade. Macaqueia-se. Vive-se de macaquice. Nada se cria, tudo se copia. Temos até Beverly Hils, numa cidade sem montanhas, defronte dos apartamentos que ficam debaixo da ponte do rio Poty.


A. Tito Filho, 16/07/1989, Jornal O Dia

domingo, 28 de agosto de 2011

EM TESTEMUNHO DA VERDADE

Deu-se que eu já era estudante no Rio de Janeiro, quando, em fevereiro de 1945, o sincero José Américo de Almeida, numa entrevista, estremeceu a cansada ditadura de Getúlio Vargas.

Tive, na velha capital, boníssimos companheiros de pensões estudantis e de Largo do Machado, local do Café Lamas, recanto pitoresco da estudantada de faculdades superiores de ensino, que aí madrugava nos alegres bate-papos em torno da vida provinciana distante ou dos acontecimentos da terra carioca, a exemplo de Tibério Nunes, Petrarca Sá, Fenelon Silva.

Residi, certa fase, com Espedito Resende, hoje figura das mais conceituadas da diplomacia brasileira, no mesmo aprazível hotelzinho da rua Haddock Lobo, na Tijuca.

Nesse referido e emocionante 1945 surgiram, após oito anos de totalitarismo caboclo, novos partidos políticos, de caráter nacional, e marcaram-se eleições presidenciais e constituintes. Em abril, morreu Roosevelt. Maio, no inicio, houve o fim da guerra na Europa. Entre junho e julho, participei de duas numerosas comitivas de estudantes que acompanharam o brigadeiro Eduardo Gomes, o candidato anti-Getúlio à presidência, nas visitas a São Paulo e Belo Horizonte. Na primeira cidade, pouco entusiasmo, mas na outra os mineiros demonstraram disposição e coragem cívica.

Inaugurou-se o processo atômico com as bombas sobre Hiroxima e Nagasáqui. No Recife, assassinaram o jovem líder Demócrito de Sousa Filho, efetivando-se o tumulto de violentas paixões partidárias. Derribou-se o governo Vargas em outubro. E a 2 de dezembro os moços de pouco mais de vinte anos, como eu, pela primeira vez escolhiam nas urnas o primeiro mandatário do país, os deputados e os senadores incumbidos da feitura de nova constituição republicana. Venceu o prélio presidencial o militar do Exército Eurico Gaspar Dutra, derrotando Eduardo Gomes, Yedo Fiúza e o quase desconhecido Mário Rolim Teles.

No meu longínquo Piauí a campanha política dividia governistas e oposicionistas da forma que fossem inimigos ferrenhos e figadais. Mostrava-se virulenta a linguagem dos comícios de praça pública e dos dois jornais a serviço dos lutadores. A gente tinha ciência dos episódios familiares e pelas colunas jornalística - e no órgão "O Piauí", editado duas vezes por semana, militavam as penas vigorosas de Eurípedes de Aguiar, Simplício Mendes, Esmaragdo de Freitas, Arimathéa Tito, os dois primeiros com mais de 60 anos de idade e os dois últimos com quase sessenta.


A. Tito Filho, 14/10/1989, Jornal O Dia

LEMBRANÇAS

A verdade esteve em que os oposicionistas do Piauí devem ter-se decepcionado, como os do Rio, com as urnas de 2 de dezembro de 1945. O triunfo coube ao adversário, embora na província piauiense se verificasse a vitória de Eduardo Gomes, dos candidatos ao Senado e de quatro dos sete integrantes da representação na Câmara dos Deputados. Não houve, porém, desertores, nem se esfriaram os ânimos. O jeito era aguardar a luta pelo governo estadual.

Muito se esperava do presidente Eurico Dutra, que, mais de uma vez, acenou ao país com um governo de entendimento e concórdia, a fim de que se consolidasse o regime recém-nascido. Em quase todos os Estados se deu o diálogo dos adversários, entre os quais até acordo se verificou. No Piauí, o clima passional rebentou mais forte e ódios e malquerenças perturbaram de maneira intensa os chefes e os seus seguidores. Para ajudar os correligionárias conterrâneos, criamos, Tibério Nunes, Luiz Costa, Virmar e Vinicius Soares e eu, o jornalzinho "Libertação", de boa valentia, que os generosos bolsos de José Cândido Feraz financiavam. Foi nesse clima de emoções partidárias que se efetivou o empastelamento, calada da noite, de "O Piauí", a tribuna de inteligência e bravura, ocupada por Eurípedes de Aguiar e seus leais companheiros de idealismo objetivo. Pior: os irresponsáveis arrebentadores de prelo e misturadores de caracteres tipográficos mataram o humilde vigia das oficinas e ainda feriram modesto operário. O revoltante crime repercutiu por toda parte e feriu de morte a autoridade da interventoria do Estado. Mais e mais, no Rio, os moços piauienses de "Libertação" se empolgaram, e novas edições foram feitas e remetidas a Teresina, com grande sucesso.

Fixaram-se eleições governamentais e de deputados estaduais nos organismos federados para 19 de janeiro de 1947. Firmou-se a candidatura oposicionista do médico José da Rocha Furtado à Chefia do executivo do Piauí - candidatura que logo mereceu aplausos vibrantes e decisivos. Na antiga capital brasileira, Tibério Nunes, Fenelon Silva, Álvaro ferreira filho, Mariano Mendes e eu organizamos comitiva, com auxilio financeiro de Joaquim Pires Ferreira, para, no Piauí, ajudar os sofridos e destemorosos correligionários. Saímos da terra carioca um dia ou dois após o Natal de 1946, de trem, passando por Belo Horizonte e atingindo Pirapora. Daí até Remanso, na Bahia, viajamos num vaporzinho do São Francisco, embarcação saudável, gostosa, aprazível, que o povo apelida de gaiola. Alguns dias de alegre convivência gozamos no barco, com apetitoso de-comer, sono tranqüilo e repousante. Em vários portos fluviais o naviozinho abicava, para pegar lenha, descer ou receber passageiros. Num deles, Fenelon e eu nos metemos em inesquecível peripécia amorosa, com duas fuampas de beira de rio.


A. Tito Filho, 15/10/1989, Jornal O Dia

sábado, 27 de agosto de 2011

CASSADOS

A Academia Piauiense de Letras, como outras instituições do gênero, sempre concedeu prazo aos candidatos para a respectiva posse, uma prática obrigatória e solene. Assim dispõem os regimentos internos dos sodalícios. A falta da posse faz que o eleito se destitua de uma das condições configuradas da definitiva integração do titular nos quadros acadêmicos. Sem a posse, inexiste a efetiva conquista da honraria. O eleito sujeita-se a perder o mandato.

Houve na Casa de Lucídio Freitas alguns casos objetivos relativamente a acadêmicos eleitos e não empossados, destituídos, pois, da cadeira, que se considerou novamente vaga. O eleito, apesar de várias vezes convidado, por razões pessoais, se negava a tomar posse. O primeiro deles se chamou Antônio José da Costa, jurista ilustrado, desembargador do Tribunal de Justiça do Piauí e presidente do colegiado.

Na presidência de Simplício de Sousa Mendes alguns eleitos perderam a cadeira. Sejam lembrados José Virgílio Castelo Branco Rocha, professor da Faculdade de Direito, estudioso da sociologia e jornalista, hoje residente na capital do Paraná. Outro foi o consagrado mestre Clemente Honório Parentes Fortes, uma das maiores inteligências da sua época, conhecedor profundo da língua portuguesa, falecido num triste natal da década de 70. Ainda por idênticos motivos deixou de ingressar na Academia o poeta Durval Burlamaqui do Rego Monteiro. Outro foi o admirável Sousa Neto, romancista dos melhores, jurista e jornalista.

Simplício Mendes, ainda por falta de posse, tornou sem efeito a eleição de Odylo Costa Filho, mas este notável jornalista justificou plenamente o silêncio e a falta de posse. Estava residindo no exterior. O presidente aceitou a justificativa e a posse se verificou, em bonita solenidade no antigo Clube dos Diários.

Durante os meus mandatos como presidente da entidade ainda não tive a necessidade de aplicar o dispositivo regimental e todos os eleitos tomaram posse nas datas combinadas. Ainda bem.


A. Tito Filho, 25/02/1989, Jornal O Dia

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

A REPÚBLICA NO PIAUÍ

- Relativamente ao dia 15-11-1889, escreveu o historiador Pereira da Costa narrando a história da República em Teresina:

"Repleto de espectadores o teatro Concórdia, da capital, em aparatoso espetáculo. Ressoa a notícia telegráfica do rompimento de uma revolução no Rio de Janeiro, que proclamara a República do Brasil, aceitando-a o povo e depôs o imperador dom Pedro II. Manifestando-se pela notícia, e prorrompendo em explosões de adesão alguns dos mais exaltados espectadores, ordena o chefe de Polícia a sua prisão, e redobra a força que fazia o policiamento do espetáculo. A notícia, porém, vulgarizou-se logo, alarmou a toda a cidade e causou grande efervescência popular. Até o amanhecer do dia esteve a estação telegráfica repleta de povo ávido de notícias particulares sobre os inesperados e sensacionais acontecimentos".

- Em relação ao dia 16-11-1889, escreveu Pereira da Costa: "Recebida às 5 horas da tarde a notícia da aclamação do general Manuel Deodoro da Fonseca para chefe do Governo Provisório da República e da organização de um ministério democrático, e lidos ao povo, reunido em grande massa em frente à estação telegráfica, os despachos de tais notícias, dirigem-se-lhe depois, de uma das janelas do estabelecimento, o capitão Francisco Pedro de Sampaio e o telegrafista Leonel Caetano da Silva em calorosas alocuções, e concluem proclamando a República no Piauí, ao que o povo correspondeu em delirantes aclamações, formando depois um grande cortejo cívico que percorreu toda a cidade. Reunidos, à noite alguns cidadãos à oficialidade da Companhia de Infantaria de Linha, organizam um governo republicano provisório composto dos capitães Reginaldo Nemésio de Sá e Nelson Pereira do Nascimento e do alferes João de Deus Moreira de Carvalho, os quais, dirigindo-se logo ao palácio do governo, depõem o vice-presidente em exercício, Dr. Lourenço Valente de Figueiredo, que não opôs a menor resistência, ficando assim instalado o governo provisório, que lavra o seu primeiro ato nomeado para o cargo de secretário o jornalista Antônio Joaquim Diniz".

- A 18.11.1880, os militares convocaram para o governo os civis Barão de Uruçuí, Joaquim Dias de Santana, Teodoro Alves Pacheco e Cônego Tomás de Morais rego.


A. Tito Filho, 15/11/1989, Jornal O Dia

CRIME E IMPRENSA

Faz uns trinta anos, Antônio saraiva Soares Bento, na Guanabara, ou Rio de Janeiro, teve violenta discussão com a amante, com quem residia no bairro de Santa Teresa, num apartamento. No calor das ofensas recíprocas, o citado brasileiro bateu na mulher, com um instrumento de aferrolhar a porta. A vítima, aos gritos, pedia socorro. Receoso de atrair atenções, Bento deixou o apartamento, rumo da rua, regressou pela madrugada para uma grave surpresa: a mulher estava morta.

O homem sempre procura esconder as más ações que pratica. Cada um de nós tem sua culpa desconhecida dos demais. Esconder o ato criminoso é próprio da personalidade humana. Pois bem. Antônio Soares Bento arranjou petrechos, serrou os membros inferiores de cadáveres, e dispôs cabeça, tronco e partes serradas num baú, enterrando a carga macabra com a ajuda de amigo, num quintal de Niterói.

Não importa que se recomponha o processo policial da descoberta do crime. Vale dizer que o criminoso compareceu no júri, do qual saiu condenado a quase 20 de encarceramento.

Por que teriam agido os jurados com tanto rigor?

O assassino não quis tripudiar sobre o cadáver, por ódio ou outro sentimento vil. Serrou-o com o intuito de enterrá-lo, e ficar livre, gesto que pareceu desumano e torpe, mas compreendido por quem entenda do comportamento do criminoso, que procura fugir à ação da polícia e da justiça, com o receio, que é de todos, da perda da liberdade, bem luminoso da existência.

Os jurados, entretanto, decidiram sob a influência dos comentários jornalísticos permanentes, alimentados das manchetes sensacionalistas, uns e outras definindo o crime do réu como monstruoso, bárbaro, horrível, circunstância que mais me ressaltava com as fotografias da vitima obtidas no necrotério e estampadas nas folhas quotidianas.

E assim tem agido o jornalismo - jornal, rádio, televisão - quando se verificam homicídios e outros crimes. Em vez da informação pura e simples dos fatos, dos episódios, - em vez da reportagem sincera do que se passou, da reprodução exata de testemunhos, o jornalismo adota posição contra o acusado ou a favor dele, e de qualquer jeito prejudica os interesses mais altos da justiça, o que vale dizer da própria sociedade. Critério, como se vê, condenável, ofensivo do direito de cada um a julgamento imparcial, desapaixonado.


A. Tito Filho, 14/06/1989, Jornal O Dia

VESTIBULAR

A máquina surgiu no século XIX, mas o seu extraordinário poder pertence ao século XX, em que tudo passou a ser fabricado, inclusive menino. Natural, pois, que se montassem máquinas de fabricação de doutores, num país como o Brasil, em que o mercado de trabalho é muito escasso para o doutoramento.

O vestibular brasileiro tem sido uma farsa eloqüente. Nele não se verificam aptidões, mas a existência de vagas. Se a universidade possui mil vagas, pode aprovar mil candidatos e se fabricarão mil doutores, com certeza.

Já se provou que o sistema de preencher cagas é falível: o sistema dos testes. Durante meses, rapazes e moças andam pelas ruas, cadernos debaixo do braço, a fazer perguntas e mais perguntas, com o pensamento no exame aterrador:

- Quem descobriu o Brasil?

1) Foi você?

2) Foi Pedro Álvares Cabral?

3) Foi Pelé?

4) Ninguém até hoje descobriu o Brasil?

Neste ponto o candidato, se estava nervosíssimo da guerra psicológica do vestibular, fica doido. Lê duas vezes os quatro caminhos. E conclui, depois de muito suor: nunca descobri cousa alguma, logo não descobri o brasil. Mas alguém o descobriu. As perguntas 1 e 4 ficam exoneradas, portanto. Tenho certeza de que Pelé se encontra na história do futebol, jamais na dos descobrimentos. Resta Pedro Álvares Cabral. Xis nele.

Ainda vive o Brasil subservientemente com a exigência de inglês ou francês. Que necessidade tem o doutor de saber inglês ou francês? A própria universidade afirma que os dois são desnecessários, desde o instante em que confere ao candidato a prerrogativa da escolha entre uma e outra língua. Quer dizer: o futuro doutor, se quiser, prestará exame de inglês. Caso lhe dê na tela, desprezará o inglês e mostrará conhecimentos de francês. Assim, ou o inglês é reclamado pela formação intelectual do doutor, ou não, de acordo com a exclusiva vontade do candidato.

E por que não se exigem o alemão, o italiano, o russo, o holandês, o chinês?


A. Tito Filho, 14/07/1989, Jornal O Dia

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

PATRÍCIO FRANCO

A 10 de abril deste 1989, a Academia Piauiense de Letras perdeu o titular de sua cadeira 31, José Patrício Franco, nascido no povoado Porto Alegre do município de Jerumenha (PI) a 14 de setembro de 1906. Pobre, trabalhou nas cidades de Uruçuí e Floriano como caixeiro e professor municipal. Seria depois guarda-livros no longo período de 14 anos. Em Teresina, fixou-se em 1942. Escriturário, contador, gerente e diretor do Banco do Estado do Piauí, no qual se aposentou ma qualidade de funcionário no ano de 1969, mas permaneceu como membro do Conselho de Administração. Exerceu marcantes  atividades políticas, sociais e culturais. Vereador de Teresina por duas legislaturas. Pertenceu à Associação Brasileira de Municípios, participou de muitos congressos municipais no Brasil e um no exterior, nos Estados Unidos. Criou jornais e colaborou constantemente na imprensa. Um dos fundadores da Associação Profissional dos Jornalistas do Piauí. A 30 de janeiro de 1979 ingressou na Academia Piauiense de Letras. Publicou vários estudos de história, destacando-se "História do Banco do Piauí", "O Município do Piauí", “Capítulos de História do Piauí". Escreveu também poesia. Pertenceu a várias e ilustres instituições culturais.

José Patrício Franco deixou exemplos de muitas virtudes. Teve infância humilde e pobre. Desde cedo conheceu a luta para a sobrevivência. Exerceu modestos empregos. Venceu pelo trabalho e pela honradez. Leal e correto nas amizades que conquistou. Autodidata de rara dedicação ao estudo e à pesquisa, conquistou respeito e admiração. Dedicava profunda afeição à família, por cuja tranqüilidade e bem-estar padeceu sacrifícios e enfrentou graves problemas, armado de um caráter puro e grande tenacidade. Sereno e sincero, soube de conquista em conquista perseverante nos esforços, alcançar posição de relevo em todos os círculos sociais de Teresina. Esteve sempre solidário em todas as circunstâncias, com a sua Academia Piauiense de Letras, que ele honrou mercê de exemplar vida pública e privada. Os seus colegas acadêmicos o tinham na conta de um companheiro da mais alta compostura na convivência saudável de todos os dias.


A. Tito Filho, 19/05/1989, Jornal O Dia

terça-feira, 23 de agosto de 2011

MESTRE ODILON NUNES -III

Lembre-se que no começo do século XIX o ouro, o diamante e o açúcar estavam em decadência. O Norte representava dois terços da atividade útil do Brasil. Se Fidié se mantivesse no Piauí, como queria D. João VI, Portugal dominaria o Norte e evitaria a vitória dos baianos, cortando-lhes o fornecimento de carne. Maranhão, Piauí e Pará formariam o Brasil Português, subordinado a Lisboa.

No 3º volume, Odilon estuda de modo profundo as causas da Balaiada e sobre o assunto apresenta impressionante documentação. Para ele, essa guerra violenta no Maranhão e Piauí resultou de um choque de culturas. As origens próximas da luta estavam na pratica perniciosa do recrutamento promovido pelo Exército, fazendo que pobres caboclos entrassem para o serviço das armas, longe da terra e da família. As causas sérias eram outras: as condições de ordem econômica geradoras de permanente miséria coletiva; a terra confiada a poucos; àqueles que representavam o regime político e que viviam de explorar o homem do interior; a fome e a estrutura social, o brasileiro esquecido e abandonado.

Finalmente, no 4º volume, Odilon Nunes realiza estudos sociais e políticos da maior relevância: as lutas partidárias, o processo educacional, o regime de trabalho, o crime e suas causas, a mudança da capital de Oeiras para Teresina, a guerra do Paraguai, a liberdade dos escravos, a colonização e aspectos culturais do Piauí. Pena que o ilustrado e honesto historiador esbarre na República.

Deduz-se que, no fim do século XIX, o Piauí parecia esmorecer: economia de subsistência, fontes de riquezas estagnadas, comércio e lavoura em grandes dificuldades, decadência da pecuária, tristes condições educacionais e culturais.

Pesquisa de probidade inatacável, são seguras as observações que Odilon Nunes reuniu nos 4 volumes sobre homens e episódios da história piauiense, com a ingente preocupação de elucidá-la e interpretá-la. Tem sido mestre incansável na busca de documentos de rara importância para a feitura da tarefa que se impôs. Bem disse dele José Honório Rodrigues: "Odilon Nunes é um pesquisador notável, fiel à verdade histórica, buscada nas fontes primárias, e um historiador que, pela obra paciente de relembrar o passado de um povo tão agravado, tão empobrecido, mas tão leal ao Brasil, em tantas conjunturas extremas, se coloca na vanguarda da historiografia estadual".

Faleceu Odilon Nunes, depois de legar ao Piauí uma obra brilhante e necessária. Pertencia a Academia Piauiense de Letras.


A. Tito Filho, 26/08/1989, Jornal O Dia

MESTRE ODILON NUNES - II

Sertão desconhecido, ignoto, temeroso. Dizem até que a famosa Casa da Torre, no litoral da Bahia, tinha duas faces, uma para o mar, vigiando piratas e inimigos, outra para as terras de perigos sempre fartas.

Até a Independência, a história do Piauí se resume quase na história da pecuária. Bois, vacas, garrotes e bezerros apinhavam os lugares. Cada vez mais cresciam os rebanhos sem mercados. O vacum representava a moeda, o dinheiro. Inexistia patrão. O vaqueiro não era empregado, mas sócio nas reses, e escreveu páginas inesquecíveis na vida piauiense.

Nesses longínquos fins dos anos setecentos, o Piauí enfrentava problemas angustiantes de tardio povoamento, dificuldades de transportes, sem agricultura e sem escolas.

Não se esqueça a perversa matança da indiada aos magotes. João do Rego Castelo Branco liquidava todo tipo de índio: feto, recém-nascido, crianças, adolescentes, moço, maduro e velho. As estrepolias sangrentas desse exímio degolador ingressaram na história. Cumpria ordens dos conquistadores da terra e dos governantes. E cumpria-as sem um pitoco de remorso, alegre sempre.

Em Odilon admira a paciência na busca do documento, o documento que ele confere, examina, estuda e dele retira a verdade, para a narrativa segura e a análise esclarecedora.

O mestre dedica o 2º volume das suas investigações à independência.

A vila de Parnaíba deu o grito primeiro no Piauí, a 19/10/1822. A noticia chegou a Oeiras, sede do governo português na capitania, e logo o comandante das armas de Portugal, Fidié, seguiu com infantaria e artilharia do cabo-de-guerra luso, Manuel de Sousa Martins, dia 24 de janeiro de 1823, manhãzinha, proclamou a independência na capital e estabeleceu governo com a distinção das autoridades portuguesas.

Em Parnaíba, onde se aquartelou, Fidié teve tempo para disciplinar as tropas e receber material bélico do Maranhão. Fazia-se necessário retornar a Oeiras e retomar o governo. O comandante português marchou para alcançar Campo Maior - e aí, às margens do Jenipapo, vaqueiros e roceiros o aguardavam. Houve os primeiros choques. Ceifadas muitas vidas. Os nossos homens buscavam a morte. Portugal sofreu pesadas perdas. Retirou-se, em rumo do Maranhão. A luta no Piauí decidiria a unidade brasileira, pois Portugal queria dois Brasis: o do Norte, rico em gado, para ele; e o do Sul, pobre, de que os portugueses não faziam conta.


A. Tito Filho, 25/08/1989, Jornal O Dia

MESTRE ODILON NUNES - I

As Pesquisas para a História do Piauí, de Odilon Nunes, em 4 volumes, revelam a saga piauiense, dos primeiros tempos até o fim do período provincial, uma saga com gosto e sabor de tragédia.

Do volume inicial constam a pré-história, os primeiros contatos com a terra, os primórdios da colonização e dos currais, a ausência de disciplina legitima e os governos que deram começo à vida politica.

A narrativa abrange os índios, a matança destes, a sangueira, o genocídio, as lutas sem fim, as sesmarias, o Parnaíba, riozão famoso, o território imenso de população e população escassa. Uma vez escrevi que a história do Piauí, no principio, está no pânico e no vácuo. Dias perigosos: o pânico. A volúpia mortífera das desgraças do meio: o vácuo. Odilon mostra e interpreta isso tudo. Neste ponto o seu extraordinário valor: a análise dos episódios, causas e consequências.

Domingos Afonso Mafrense e o xará Domingos Jorge Velho - sertanista e bandeirante - penetraram o Piauí com os seus troços de gente, e colonizaram terras, senhores de sesmas e de latifúndios, do gado bovino trazido e outras paragens. Sobre o primeiro não há duvida. Com o outro, o paulista, baita de homem severo e truculento, indicam alguns historiadores e dizem que não passa de lorota a sua vinda ao Piauí, donde teria saído para a matança dos Palmares, nas Alagoas. Odilon estudou detidamente o fato em mais de um trabalho, anotando referencias a bandeiras paulistas que agiam nos sertões do São Francisco, de 1671 a 1674: "Podemos assim presumir que Domingos Jorge Velho pertenceu a algumas dessas bandeiras a que nos referimos, se não fora mesmo o chefe de uma das partidas de paulistas que vinham operando nos sertões do São Francisco". Num livrinho rico de observações, o mestre sustenta, categórico, a respeito do paulista espadaúdo: "São múltiplas as provas da sua atividade no vale do Parnaíba".

Fim do século XVII. Admirável a ação dos catequistas. O Piauí torna-se cenário histórico empolgante. Já o bandeirante transmuda-se em curraleiro, encourado, nômade, solitário, individualista - são ensinamentos de Odilon. A riqueza era o gado e da rês se aproveitava tudo, a carne, os ossos, o tutano, bofes, cacos, couros, chifres, fezes, até o membro genital enorme. Em tudo o bovino: na panela, no cornimboque, nas liteiras, no gibão, nos arreios, em certos vasilhames de viagem, nas portas, nos calçados. Muitos falaram dessa civilização do couro.


A. Tito Filho, 24/08/1989, Jornal O Dia

VESTIBULAR

Por todo o Brasil, milhares de jovens de ambos os sexos se inscrevem nos exames vestibulares das universidades, em busca do cobiçado título de doutor ou cousa que o calha. Neste país se assentou o preço do triunfo num anel de grau. E haja anel de grau para todos os dedos como se ele conferisse mercado de trabalho para tantos, cuja ambição única consiste no doutoramento, quase sempre sem horizontes.

Criou-se no Brasil a mística da universidade. Ou o jovem conquista a aprovação no vestibular, ou passa a viver angustiantemente, como se fosse marginal. E teima e reteima. Tudo começa com os cursinhos e há mais cursinhos neste país do que vagas universitárias.

A verdade é que a juventude nacional não estuda, não lê. Freqüenta cursinhos. Não se diga que os cursinhos sejam nocivos. Pelo contrário. Bem ou mal, procuram realizar o seu trabalho preparatório. Mas neles se matriculam jovens na grande maioria despreparados. Justamente porque foi péssimo o estudo secundário feito nas escolas.

Recebe o candidato a vestibular o respectivo programa fornecido pela universidade. Tais programações, as mais das vezes, são mal orientadas, concebidas nos gabinetes dos técnicos, com muito conhecimento de teoria e sem nenhuma capacidade para interpretar a vida e seus processos culturais.

Jornais, revistas, cursinhos, professores publicam e ensinam respostas a numerosas questões em forma de teste, com uma escolha entre quatro ou cinco oferecidas. E passam os candidatos a viver alguns meses de verdadeira tormenta de memória. Fazem consultas por toda parte e a toda gente. De modo geral, esses testes universitários constituem quebra-cabeças, e moços e moças gravitam, dia e noite, em torno deles.

Que nome adotou o atual papa?

Em seguida alinham vários nomes: Rui Barbosa, João Paulo II, Edison Arantes do Nascimento, Dom João VI e Pedro Álvares Cabral.

O candidato não sabe o nome do papa atual, mas certamente sabe que Rui Barbosa, Dom João VI e Pedro Álvares Cabral já morreram. Que Edison Arantes do Nascimento é o Pelé. Então João Paulo II, claro, cruz nele. Acertou. Salvou-se o Brasil. Mais um futuro doutor, de borda e capelo.


A. Tito Filho, 13/07/1989, Jornal O Dia

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

A VELHA TERESINA

Ainda em 1952, época do primeiro centenário da cidade, Teresina padecia tristíssimas condições de conforto, em todos os sentidos. Péssimo calçamento das ruas, ausência de higiene, falta de escolas, mendicância generalizada. Chegaria, porém, o chamado progresso físico, o asfalto, os aviões a jato, o comércio de prestações, os restaurantes sofisticados, o carro financiado, a casa do BHN, a televisão, o jornal moderno, a civilização da lancheira, o supermercado onde as matronas compram frango depenado. Nos velhos tempos as senhoras carrancudas só compravam galinhas soprando-lhes as penas e lhes apertavam o bico a ver se o gogo escorria. Os bons cabarés da Paissandu desaparecem, substituídos por motéis e gramas de praças.

De trinta anos para cá a cidade mudou muito. Desespiritualizou-se. Tem no dinheiro o status e o conforto material repousa em dívida. Vigora o cheque sem fundo. Por onde anda o pega-pinto que ajudava a fazer pipi? Teresina possui contrastes aviltantes. Jóquei e Itararé. Mansão e casebre. Morreram hábitos bons. Surgiram universidades e hoje se fabricam doutores para o desemprego.

Garotas ricas se desnudam ao lado das ruas que não têm com que cobrir as suas vergonhas.

Mas Teresina reencontrará o bom caminho. Cada dia fica mais bonita em graças construídas pelas mãos do homem. Os seus intendentes e prefeitos cada qual tem melhorado, dentro das suas possibilidades, os aspectos da criatura de José Antônio Saraiva.

É necessário lutar pela humanização da cidade. Fazer que ela retorne à vida espiritual de antigamente. Enquanto a gente pensar assim, Teresina será sempre um instante de beleza no coração dos que a amam.


A. Tito Filho, 17/08/1989, Jornal O Dia

O DENUNCIANTE

Dondon queria comprar uma tipografia para publicar o jornal dos seus sonhos, "O DENUNCIANTE", que ele realmente publicou. Num dos artigos do novo órgão da imprensa teresinense escreveu:

"1) Custou-me no começo de 1919 o maior do Exército Antônio da Costa Araújo Filho apoderar-se de três vacas minhas, sem o meu consentimento...

2) Custou-me no dia 13 para amanhecer 14 de maio de 1925 terem querido tirar a minha vida a traição e que ainda recebi três bordoadas... por este motivo... deu em resultado eu passar 21 meses e quatro dias em casa sem sair à rua.

3) Custou-me no dia 19 de Setembro de 1924 mandarem me meter na cadeia, qaundo foi no dia 8 de outubro do mesmo ano tornaram a me meter na cadeia e esta segunda vez ainda acharam pouco, da cadeia me mandaram para ser internado no Azilo dos Doidos, onde passei dez dias contra a minha vontade e dois por minha conta..."

Está aí o "O Denunciante" do saudoso Dondon. Copiamo-lo com desvelo. Respeitamos a grafia da época e do autor. Ao trabalho, que é simples compilação, pedimos que o leitor dedique atenção.

Jornalismo saboroso, com defeitos e qualidades, mereceu a transcrição que ora se faz.

Conheci Dondon vendendo capim, em jumentos amestrados, pelas ruas de Teresina. Os jegues aprenderam a fazer alto, dobrar à direita e à esquerda, de acordo com as ordens do dono.


A. Tito Filho, 17/02/1989, Jornal O Dia

CAÇADOR

Em Feira de Santana, o campeonato local das mentiras referentes a caçadas pertencia a dois indivíduos, pai e filho. Diferenciavam-se nisto: o pai contava coisas estupefacientes, mas com quê de verossimilhança; ao passo que as narrativas do filho revoltavam pelo cinismo do apregoamento de fatos impossíveis, impingidos como autênticos. Com uns estrangeiros, hóspedes do hotel Camilo, os campeões da pêta venatória conversavam, quando o mais velho, isto é, o pai informou:

- Aqui perto da cidade, tem uma lagoa que tem marreca por peste. Outro dia, com a minha espingarda espalhadeira de chumbo, dum tiro só que dei matei dezesseis marrecas...

- E um macaco! Interveio o filho mentiroso.

Os estrangeiros entreolharam-se surpresos, mas o velho não desanimou:

- Sim, e um macaco! Esse macaco vinha passando, na ocasião, por cima de um lance de cerca que tem no meio da lagoa.

Com essa, os estrangeiros deram o fora, cochichando, sorridentes. então, o velho intimou o filho:

- Você perca esse costume de me ajudar em história que eu estiver contando! Você é burro? Você já viu macaco dentro d’água? Só eu sei o trabalho que eu tive pra botar aquele lance de cerca dentro da lagoa!

Esta estória foi contada por Leonardo Mota, uma das melhores expressões da literatura cearense, que visitou a Academia Piauiense de Letras faz muitos anos.


A. Tito Filho, 15/04/1989, Jornal O Dia

AINDA A CONSTITUINTE

Encerraram-se os trabalhos parlamentares a 26.02.1891 - e os congressistas passaram a legisladores ordinários depois de alguns meses de descanso, separados em Senado e Câmara dos Deputados. A 15.06.1891, inaugurou-se a 1ª Legislatura, que se seguiu à Constituição da República, integrada dos mesmos deputados e senadores constituintes. Mas a 3 de novembro do mesmo ano o presidente Deodoro baixou o seguinte ato, justificado por manifesto de igual data:

"Art. 1º - Fica dissolvido o Congresso Nacional eleito em 15 de setembro de 1890.

Art. 2º - E convocada a Nação para, em época que ulteriormente se fixará, escolher novos representantes.

Art. 3º - O Governo expedirá para esse fim um regulamento eleitoral, assegurando ao País plena liberdade nessa escolha.

Art. 4º - O novo Congresso procederá a revisão da Constituição de 24 de fevereiro deste ano, nos pontos que serão indicados no decreto de convocação.

Art. 5º - Essa revisão em caso algum versará sobre as disposições constitucionais que estabelecem a forma republicana federativa e a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade e segurança individual.

Art. 6º - revogam-se as disposições em contrário. O Ministro de Estado dos Negócios do Interior assim o faça executar.

Capital Federal, em 03 de novembro de 1891. 3º da república. aa) Manuel Deodoro da Fonseca, Tristão de Alencar Araripe, ministro do Interior".

Sobreveio, entretanto, o contragolpe de Floriano Peixoto. O marechal Deodoro renunciou ao poder e o Congresso Nacional prosseguiu no exercício de suas funções.

A Constituição de 1891 estabeleceu eleição dos senadores pelo povo (sufrágio direto), respeitando-se o mandato dos que haviam sido eleitos pelas Assembléias Legislativas dos Estados para a Constituinte e que permaneceram nas legislaturas ordinárias até a extinção dos respectivos mandatos.


A. Tito Filho, 14/11/1989, Jornal O Dia